segunda-feira, 19 de maio de 2014

Experiências com Animais



Enquanto debatemos animadamente ideias, ou em vez disso capitulamos perante uma existência rotineira e absorvente que apela a que abandonemos as ideias, ou vergamos a nossa consciência à falsa noção de uma ciência que, como uma imperatriz cruel, silencia a moralidade em nome do seu próprio sucesso – enquanto isso sucede há sofrimento inútil que perdura.
É especialmente difícil ouvi-lo, porque ele não é comunicado em palavras ou choros, mas em latidos, uivos e outros sons que erradicamos do nosso cotidiano. E é difícil interpretá-lo mesmo quando o ouvimos, porque ele não preenche os moldes antropomórficos do nosso entendimento do mundo.
Mas quando o ouvimos e o entendemos, então uma alternativa se nos apresenta: ou desviamos com horror o nosso olhar e procuramos justificativas para fazê-lo, ou então somos interpelados a agir, novamente procurando justificar que o façamos.
Podemos desviar o olhar, desligar a consciência, sobrepor-lhe considerações diversas: mormente a de que a ciência, no seu sucesso, justifica todos os meios (um argumento que não aceitamos que se aplique à espécie humana, reagindo com repugnância à ideia de cobaias humanas sem restrições); ou ainda a de que o sofrimento das cobaias não-humanas é algo menos merecedor de consideração do que o sofrimento das cobaias humanas (um argumento de "descontinuidade de estados de sofrimento" que abolimos quanto à espécie humana, quando nivelamos a vulnerabilidade humana através de conceitos como o de "dignidade" dos membros da nossa espécie); ou até o de que as cobaias não-humanas devem sua própria razão de ser aos fins a que se destinam, à sua funcionalização ao sofrimento (argumento que também erradicamos há muito na nossa espécie, com medo de que isso legitimasse a instrumentalização, ou até a canibalização, dos nossos filhos).
Mas se, em vez de desviarmos o olhar ou de fingirmos que não entendemos, encararmos o problema, então a nossa consciência moral e jurídica interpela-nos e força-nos a agir: seja com a força dos nossos argumentos e das nossas convicções – uma força não-negligenciável, porque historicamente lhe devemos todos os progressos civilizacionais –, seja até com gestos práticos que interrompam ou abreviem o sofrimento, ou que ao menos, na sua radicalidade simbólica, sacudam as consciências, provoquem o debate e até a indignação, confiram visibilidade à causa, permitam um instante de esperança e de luz.
Também a nossa consciência jurídica é interpelada: aqueles que alegam que, em ações concretas de "libertação das cobaias", está a ser ferido o sacrossanto direito de propriedade privada, deviam pensar se usariam o mesmo argumento para defender a propriedade privada dos senhores de escravos há dois séculos ou a propriedade privada de um sequestrador que guarda as suas vítimas no porão da sua casa. E aqueles que não vêem o Direito envolvido em questões de sofrimento não-humano deveriam interrogar-se sobre as consequências práticas, cotidianas, da nossa insensibilização à expressividade da "natureza" que não criámos, e sobre o que isso implica de abolição de limites ao respeito que imemorialmente associamos à própria "natureza humana" – que também não criámos.
Mais, uma sociedade que prefere banalizar, transformar em rotina, formas de entendimento da existência nas quais não cabe o respeito pela vulnerabilidade de seres vivos é uma sociedade que perigosamente descamba na "esquizofrenia moral" da veneração de uma forma de vida, a humana, através de modos de opressão, de negação e de eliminação de outras formas de vida, como se elas, longe de serem integradoras da própria "animalidade humana", fossem, ou uma ameaça, ou um mero apêndice instrumental.
Uma sociedade dessas brutaliza, exclui e indefere com muito mais eficiência do que uma outra na qual a solicitude e o respeito ganhem algum espaço – não à custa da pseudo-"degradação" dos direitos humanos através do seu nivelamento com os interesses não-humanos, mas por via de uma exaltante, desafiante, nobilitante, consagração de um olhar sobre a vida que, preferindo comungar a indeferir, abarca no círculo do respeito os não-humanos e, nesse singelo gesto, alicerça melhor a defesa do que nos é mais caro e vital, a própria animalidade em nós, o sopro que nos torna vivos.
-Fernando Araújo, 55, Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, autor de A Hora dos Direitos dos Animais (2005)
-Ricardo Izar Júnior, 45, Economista, Deputado Federal pelo PSD, Presidente do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados e da Frente Parlamentar em Defesa dos Animais
-Anderson Furlan, 38, Juiz Federal, mestre e doutorando em Direito, ex-presidente da Associação Paranaense dos Juízes Federais

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